Utilização dos canabinóides no tratamento da demência

Contextualização

Demência é o nome dado a uma série de condições associadas a uma contínua perda de capacidade de raciocínio, memória e outras capacidades mentais. Os tratamentos médicos para a demência são limitados e conferem benefícios modestos. Muitos medicamentos e intervenções não farmacológicas são utilizados para tratamento de sintomas comportamentais e psicológicos de demência. No entanto, têm existido problemas sucessivos relacionados com a sua falta de eficácia, segurança e viabilidade. Consequentemente, são necessários tratamentos novos, seguros e mais eficazes para a demência e os seus sintomas.

A nossa questão de revisão

Os canabinóides são potenciais alternativas sob investigação no âmbito do tratamento da demência. O objetivo desta revisão sistemática foi investigar se os canabinóides podem ajudar as pessoas com demência, e se têm alguns efeitos potencialmente nocivos.

O que fizemos

Pesquisámos bases de dados de estudos científicos para encontrar estudos que atribuíssem aleatoriamente os participantes a um grupo tratado com canabinóides ou a um grupo tratado com uma intervenção de comparação. Combinámos os resultados dos estudos incluídos para estimar os efeitos dos canabinóides. Também avaliámos a forma como estes estudos foram conduzidos e a credibilidade dos seus resultados.

O que encontrámos

Procurámos todos os estudos relevantes publicados até junho de 2020. Encontramos 4 ensaios clínicos que cumpriam os critérios de inclusão desta revisão. Um total de 126 pessoas foram incluída nesses quatro estudos. A maioria dos participantes tinha doença de Alzheimer e um pequeno número tinham demência vascular ou demência mista.

Um ensaio clínico foi realizado nos EUA, um no Canadá, e dois nos Países Baixos. Os ensaios utilizaram diferentes tipos de canabinóides. Os estudos concluíram que os canabinóides têm pouco ou nenhum efeito na memória e no raciocínio. Estes reportaram resultados diferentes relativamente aos sintomas comportamentais e psicológicos globais da demência, com base nos tipos de indivíduos que reportavam dados. Os familiares cuidadores não reportaram efeitos benéficos dos canabinóides no comportamento e sintomas psicológicos, no entanto, o pessoal de enfermagem relatou uma melhoria dos sintomas entre os participantes que receberam canabinóides. Foram relatados efeitos adversos em todos os estudos, tanto entre os participantes que tomaram canabinóides como entre os que tomaram placebo. No entanto, não nos foi possível combinar o número total de eventos adversos devido a problemas relacionados com a forma como os dados foram reportados. Não se registaram diferenças significativa entre os participantes que tomaram canabinóides e os que receberam placebo, relativamente ao número total de eventos adversos (doenças do sistema nervoso, doenças psiquiátricas e perturbações gastrointestinais). A sedação (incluindo a letargia) foi mais frequente nos participantes que tomavam canabinóides, mas estes resultados estavam afetados de incerteza. Temos muito pouca confiança nestes resultados porque os estudos incluíram um pequeno número de participantes, existiam diferenças entre os estudos, e os seus resultados estavam afetados de incerteza.

As nossas conclusões

Tendo em conta os dados de quatro ensaios clínicos pequenos, curtos e heterogéneos é incerto se os canabinóides apresentam efeitos benéficos ou prejudiciais na demência quando comparados com um placebo. Mesmo que o benefício reportado nestes estudos seja real, o efeito foi modesto e pode não ser importante para as pessoas que vivem com demência. Para além disso, os estudos disponíveis foram muito curtos, com eficácia examinada entre as 3 e as 14 semanas, e um dos estudos não reportou de forma completa os seus métodos e resultados. É necessário um estudo grande e bem planeado e executado para compreender melhor se os canabinóides são um tratamento útil para as pessoas que vivem com demência.

Conclusão dos autores: 

Tendo em conta os dados de quatro ensaios clínicos controlados por placebo pequenos, curtos e heterogéneos, não podemos saber ao certo se os canabinóides apresentam efeitos benéficos ou prejudiciais na demência. Se os canabinóides tiverem benefícios nas pessoas com demência, os efeitos serão provavelmente demasiado pequenos para serem clinicamente relevantes. Para avaliar corretamente os efeitos dos canabinóides na demência são necessários ensaios clínicos com definição adequada do número de participantes e poder do estudo, metodologicamente robustos e com períodos de seguimento mais longos.

Leia o resumo na íntegra...
Introdução: 

A demência é uma doença crónica comum que afeta principalmente os adultos mais velhos, é caraterizada por um declínio progressivo das capacidades cognitivas e funcionais. Os tratamentos médicos para a demência são limitados. Os canabinóides estão a ser investigados no tratamento da demência.

Objetivos: 

Para determinar a eficácia e segurança dos canabinóides no tratamento da demência.

Métodos de busca: 

Procurámos ALOIS - the Cochrane Dementia and Cognitive Improvement Group’s Specialised Register - a 8 de julho de 2021, utilizando os termos cannabis ou cannabinoid ou endocannabinoid ou cannabidiol ou THC ou CBD ou dronabinol ou delta-9-tetrahydrocannabinol ou marijuana ou marihuana ou hashish. O registo contém arquivos das principais bases de dados na área da saúde (Cochrane Library, MEDLINE, Embase, PsycINFO, CINAHL, LILACS) assim como de várias bases de dados de registo de ensaios clínicos e fontes de literatura cinzenta.

Critério de seleção: 

Incluímos todos os ensaios clínicos aleatorizados (RCTs) que estudaram a utilização dos canabinóides no tratamento da demência. Incluímos participantes de qualquer idade e de qualquer sexo com demência diagnosticada (qualquer subtipo), ou com demência não especificada (de qualquer gravidade), provenientes de qualquer contexto clínico. Considerámos estudos de canabinóides administrados por qualquer via de administração, em qualquer dose, com qualquer duração de tratamento, em que estes fossem comparados com um placebo, nenhum tratamento, ou com qualquer intervenção de comparação ativa.

Coleta dos dados e análises: 

Dois autores reviram e selecionaram de forma independente os estudos para inclusão, extração de dados e avaliaram o risco de viés de todos os estudos incluídos. Quando necessário, outros autores da revisão foram envolvidos para a tomada de decisões por consenso. Aplicamos métodos meta-analíticos para calcular estimativas sumárias da magnitude do efeito, através da utilização de métodos de meta-análise de efeito fixo e métodos genéricos de ponderação pelo inverso da variância. Utilizámos os métodos GRADE para avaliar o nível de qualidade/confiança nas estimativas das medidas de efeito.

Principais resultados: 

Incluímos quatro estudos (126 participantes) nesta revisão. A maioria dos participantes tinha doença de Alzheimer; um pequeno número tinham demência vascular ou demência mista. Três estudos apresentavam baixo risco de viés em todos os domínios; um estudo tinha um risco pouco claro de viés para a maioria dos domínios.

Os estudos incluídos testaram o delta-9-tetra-hidrocanabinol natural (THC) (Namisol) e dois tipos de análogos sintéticos de THC (dronabinol e nabilona). Três ensaios tinham um desenho de estudo do tipo cruzado. As intervenções foram aplicadas entre 3 a 14 semanas; um estudo descreveu eventos adversos até 70 semanas de seguimento. Um ensaio clínico foi realizado nos EUA, um no Canadá, e dois nos Países Baixos. Dois estudos relataram financiamento não comercial, e dois estudos foram realizados com o apoio de financiamento misto, comercial e não comercial.

As variáveis primárias de resultado ou desfecho clínico nesta revisão foram as alterações na função cognitiva global e específica, sintomas comportamentais e psicológicos gerais de demência (BPSD) e eventos adversos.

Encontrámos evidência de muito baixo nível de qualidade/confiança sugerindo que pode haver pouco ou nenhum efeito clinicamente relevante dos análogos sintéticos de THC na cognição, avaliada com o Mini-Mental State Examination (sMMSE) padronizado (diferença média (DM) 1,1 pontos, intervalo de confiança de 95% (IC) 0,1 a 2,1; 1 ensaio cruzado, 28 participantes).

Encontrámos evidência de baixo nível de qualidade/confiança que sugere que pode existir pouco ou nenhum efeito clinicamente relevante dos canabinóides nos sintomas comportamentais e psicológicos gerais da demência, avaliados com o Neuropsychiatric Inventory (ou a sua versão modificada para lares de idosos) (DM -1,97, 95% IC -3,87 a -0,07; 1 ensaio com grupos paralelos e 2 ensaios cruzados, 110 participantes).

Todos os estudos incluídos apresentaram dados relativos aos eventos adversos. Contudo, o número total de eventos adversos, o número total de eventos adversos leves e moderados e o número total de eventos adversos graves não foram descritos e reportados de forma a permitir a realização de meta-análise. Não houve diferenças claras entre os grupos no número de eventos adversos, com exceção da sedação (incluindo letargia), que foi mais frequente entre os participantes que tomaram nabilona (N = 17) versus placebo (N = 6) (odds ratio (OR) 2,83, 95% IC 1,07 a 7,48; 1 estudo cruzado, 38 participantes). Considerámos que o nível de qualidade/confiança da evidência relativa aos eventos adversos era baixa ou muito baixa devido a questões sérias relativas à imprecisão das estimativas (imprecision) e à existência de evidência indireta (indirectness).

Notas de tradução: 

Traduzido por: Manuel Gonçalves-Pinho, Rafael Vieira e Luís Azevedo - MEDCIDS & CINTESIS@RISE, Faculdade de Medicina, Universidade do Porto, com o apoio da Cochrane Portugal. Revisão final: Ricardo Manuel Delgado, Cochrane Portugal.

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