Transplante de células tronco para o tratamento da esclerose sistêmica

Realizamos uma revisão da literatura médica em fevereiro de 2022 para estudar os benefícios e danos do transplante de células-tronco hematopoéticas (TCTH) em pessoas com esclerose sistêmica (SSc).

O que é esclerose sistêmica e transplante de células-tronco hematopoiéticas?

SSc é uma doença auto-imune (onde o sistema de defesa natural do corpo ataca células normais) que afeta a pele e os órgãos internos (pulmões, sistema digestivo, etc.). Os sintomas associados à SSc incluem espessamento da pele, falta de ar, sintomas digestivos e dificuldades com a função ou mobilidade que podem afetar a qualidade de vida. Há também um risco maior de morte (mortalidade) com SSc.

O TCTH autólogo é um procedimento no qual as pessoas recebem suas próprias células-tronco saudáveis (células especiais produzidas pela medula óssea que podem se transformar em diferentes tipos de células sanguíneas) para substituir as células imunológicas danificadas que possam estar causando a doença.

Há dois regimes de TCTH estudados para SSc: os regimes mieloablativos que usam ou radioterapia ou altas doses de quimioterapia que não permitem que a medula óssea se recupere por si só; e os regimes não-mieloablativos que usam uma quantidade menor de quimioterapia sem radioterapia, mas depois há células residuais na medula óssea.

Há também duas maneiras diferentes de coletar células-tronco. O TCTH seletivo envolve um processo no qual células-tronco específicas (chamadas de células CD34+) são escolhidas para re-infusão. O processo não seletivo não inclui esta etapa.

O transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas é um tratamento seguro e eficaz para pessoas com esclerose sistêmica?

Nossa revisão inclui três estudos de pesquisa. Cada estudo comparou um tipo diferente (modalidade) de transplante de células-tronco versus ciclofosfamida (um tipo de quimioterapia): TCTH não-mieloablativo não seletivo, TCTH não-mieloablativo seletivo e TCTH mieloablativo seletivo.

O risco de viés foi alto para todos os desfechos com TCTH não-mieloablativos não seletivos, mas principalmente baixo para TCTH mieloablativos e não-mieloablativos seletivos. O viés de desempenho (participantes sabendo qual tratamento tinham) não foi claro e o viés de detecção (avaliadores sabendo qual tratamento os participantes tinham) foi alto para a capacidade funcional, já que os avaliadores e participantes não eram cegos. Todos os participantes tinham SSc precoce e grave com envolvimento da pele ou dos pulmões. A idade média dos participantes era de 43 a 47 anos e a maioria eram mulheres brancas. A duração média da doença variou de 1,5 anos a 2 anos.

O ensaio TCTH seletivo não mieloablativo recebeu colunas de seleção de células CD34+ do fabricante.

Principais resultados

Concluímos nossa busca em fevereiro de 2022. Os desfechos são de dois anos para o TCTH não-mieloablativo seletivo, 4,5 anos para o TCTH mieloablativo seletivo e um ano para o TCTH não-mieloablativo não seletivo, a menos que especificado de outra forma. Todas as comparações são de transplante de células-tronco versus ciclofosfamida.

Mortalidade geral

- Não houve diferença na mortalidade entre qualquer modalidade de TCTH e ciclofosfamida.

Sobrevida livre de eventos

- O grupo TCTH não-mieloablativo seletivo tinha diminuído a sobrevida livre de eventos (34% de risco menor) aos quatro anos e 930 por 1000 pessoas terão ficado livres de eventos com o TCTH aos quatro anos.

- Não houve mudança na sobrevida livre de eventos com o TCTH seletivo mieloablativo.

Capacidade funcional

- As pessoas que receberam o TCTH não-mieloablativo tiveram uma melhora de 13%.

- 53 pessoas em cada 100 que recebem TCTH seletivo mieloablativo podem ter uma melhora significativa em comparação com 15 em cada 100 que recebem ciclofosfamida (melhora absoluta de 37%).

Espessamento da pele

- As pessoas que receberam TCTH não-mieloablativo seletivo tiveram uma melhora maior na pontuação da pele (-22% de melhora absoluta).

- 80 pessoas de 100 que recebem TCTH mieloablativo seletivo podem ter uma melhora na pontuação da pele (25% ou mais ou 5 pontos ou mais de melhora) em comparação com 53 de 100 que receberam ciclofosfamida (27% de melhora absoluta).

- As pessoas que receberam TCTH não-mieloablativos não seletivos tiveram uma melhora maior em suas pontuações de espessura da pele (-31% de melhora absoluta).

Efeitos colaterais graves

- 65 das 100 pessoas que receberam TCTH não-mieloablativo seletivo tiveram sérios efeitos colaterais em comparação com 39 das 100 que receberam ciclofosfamida (risco absoluto aumentado em 26%).

- 73 das 100 pessoas que receberam o TCTH mieloablativo seletivo tiveram sérios eventos adversos em comparação com 51 das 100 que receberam ciclofosfamida (risco absoluto aumentado em 22%).

- Não foram relatados efeitos adversos graves com TCTH não-mieloablativo não seletivo ou ciclofosfamida.

Certeza (qualidade/confiança) da evidência

Classificamos a certeza das evidências dos ensaios utilizando quatro níveis: muito baixo, baixo, moderado, ou alto. Evidências de muito baixa certeza significam que estamos incertos sobre os resultados. As evidências de alta certeza significam que estamos muito confiantes nos resultados.

Para o TCTH não-mieloablativo seletivo e o TCTH mieloablativo seletivo, temos certeza moderada nas evidências que avaliaram a mortalidade geral, a sobrevida livre de eventos, a capacidade funcional, o espessamento da pele, a função pulmonar e os efeitos adversos graves. A certeza da evidência foi rebaixada para moderada devido ao pequeno número de participantes inscritos nos estudos e à natureza dos estudos não cegos para os desfechos relatados pelos participantes. Para o TCTH não-mieloablativo não seletivo, a certeza da evidência foi baixa para todos os desfechos. Isto se deve às diferenças entre os grupos de ciclofosfamida e TCTH antes do tratamento, juntamente com o pequeno número de participantes inscritos no estudo.

Conclusão dos autores: 

O TCTH não-mieloablativo seletivo e mieloablativo seletivo tinha evidências de certeza moderada para a melhora da sobrevida livre de eventos e a espessura da pele comparada à ciclofosfamida. Há também evidências de baixa certeza de que estas modalidades de TCTH melhoram a função física. No entanto, o TCTH não-mieloablativo seletivo e o TCTH mieloablativo seletivo resultaram em eventos adversos mais sérios do que a ciclofosfamida; ressaltando a necessidade de considerações de risco-benefício cuidadosas para as pessoas que consideram esses TCTHs.

As evidências da eficácia e dos efeitos adversos do TCTH não-mieloablativo não seletivo são limitadas até momento. Devido às evidências fornecidas por um estudo com alto risco de viés, temos evidências de baixa certeza de que o TCTH não-mieloablativo não seletivo melhora os desfechos na pontuação da espessura da pele, capacidade vital forçada e segurança.

Duas modalidades de TCTH pareciam ser uma opção de tratamento promissora para a SSc, embora haja um alto risco de mortalidade precoce relacionada ao tratamento e outros eventos adversos.

É necessária pesquisa adicional para determinar a eficácia e os efeitos adversos do TCTH não-mieloablativo não seletivo no tratamento da SSc. Também serão necessários mais estudos para determinar como o TCTH se compara a outras opções de tratamento como o micofenolato mofetil, já que a ciclofosfamida não é mais o tratamento de primeira linha para a SSc. Finalmente, existe a necessidade de uma maior compreensão do papel do TCTH para pessoas com SSc com comorbidades ou complicações significativas da SSc que foram excluídas dos critérios do estudo.

Leia o resumo na íntegra...
Introdução: 

A esclerose sistêmica (SSc) é uma doença auto-imune crônica caracterizada por inflamação sistêmica, fibrose, lesão vascular, qualidade de vida reduzida e opções de tratamento limitadas. O transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) surgiu como uma intervenção potencial para o tratamento severo de SSc refratária ao tratamento convencional.

Objetivos: 

Avaliar os benefícios e danos do transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas para o tratamento da esclerose sistêmica (especificamente, TCTH mieloablativo não seletivo versus ciclofosfamida; TCTH mieloablativo seletivo versus ciclofosfamida; TCTH não mieloablativo não seletivo versus ciclofosfamida).

Métodos de busca: 

Procuramos por ensaios clínicos randomizados (ECRs) na CENTRAL, MEDLINE, Embase e registros de ensaios desde a inserção do banco de dados até 4 de fevereiro de 2022.

Critério de seleção: 

Incluímos ECRs que comparavam TCTH a imunomoduladores no tratamento da SSc.

Coleta dos dados e análises: 

Dois autores da revisão selecionaram de forma independente estudos para inclusão, extraíram os dados dos estudos e realizaram o risco de viés. A avaliação da certeza da evidência foi realizada segundo os critérios do GRADE, seguindo os métodos padrão da Cochrane.

Principais resultados: 

Incluímos três ECRs avaliando: TCTH não-mieloablativo não seletivo (10 participantes), TCTH não-mieloablativo seletivo (79 participantes) e TCTH mieloablativo seletivo (36 participantes). O comparador em todos os estudos foi a ciclofosfamida (123 participantes). O estudo que examinou os TCTH não-mieloablativos não seletivos tinha um alto risco de viés, dadas as diferenças nas características de linha de base entre os dois braços. Os outros estudos tinham um alto risco de viés de detecção para os desfechos relatados pelos participantes. Os estudos tiveram períodos de acompanhamento de um a 4,5 anos. A maioria dos participantes tinha doença grave, idade média de 40 anos e a duração da doença era inferior a três anos.

Eficácia

Nenhum estudo demonstrou um benefício geral na mortalidade do TCTH quando comparado com à ciclofosfamida. Entretanto, o TCTH não-mieloablativo seletivo mostrou benefícios gerais na sobrevida global usando curvas de Kaplan-Meier aos 10 anos e o TCTH mieloablativo seletivo aos seis anos. Classificamos nossa certeza de evidência como moderada para TCTH não-mieloablativo seletivo e TCTH mieloablativo seletivo. A certeza de evidência era baixa para TCTH não-mieloablativo não seletivo.

A sobrevida livre de progressão sem eventos foi melhor em comparação com a ciclofosfamida com TCTH não-mieloablativo seletivo aos 48 meses (hazard ratio (HR) 0,34, intervalo de confiança de 95% (IC) 0,16 a 0,74; evidência de certeza moderada). Não houve melhora com o TCTH mieloablativo seletivo aos 54 meses (HR 0,54 95% IC 0,23 a 1,27; evidência de certeza moderada). O estudo avaliando o TCTH não-mieloblativo não seletivo não relatou a sobrevida livre de eventos.

Houve melhora na capacidade funcional medida pelo Health Assessment Questionnaire Disability Index (HAQ-DI, escala de 0 a 3, sendo 3 uma deficiência funcional muito grave) com TCTH não-mieloablativo seletivo após dois anos com uma diferença média (MD) de -0,39 (95% IC -0,72 a -0,06; benefício absoluto de tratamento (ATB) -13%, 95% IC -24% a -2%; mudança percentual relativa (RPC) -27%, 95% IC -50% a -4%; evidência de baixa certeza). O TCTH mieloablativo seletivo demonstrou um risco relativo (RR) para a melhora de 3,4 a 54 meses (95% IC 1,5 a 7,6; ATB -37%, 95% IC -18% a -57%; RPC -243%, 95% IC -54% a -662%; número necessário para tratar para um desfecho benéfico adicional (NNTB) 3, 95% IC 2 a 9; evidência de baixa certeza). O estudo com TCTH não-mieloablativo não seletivo não reportou os resultados do questionário HAQ-DI.

Todas as modalidades de transplante mostraram melhora da pontuação de espessura cutânea de Rodnan modificada (mRSS) (escala de 0 a 51, sendo o número mais alto a espessura da pele mais grave) favorecendo o TCTH em relação à ciclofosfamida. Em dois anos, o TCTH não-mieloablativo seletivo mostrou uma DM no mRSS de -11,1 (95% IC -14,9 a -7,3; ATB -22%, 95% IC -29% a -14%; RPC -43%, 95% IC -58% a -28%; evidência de certeza moderada). Aos 54 meses, o TCTH mieloablativo seletivo mostrou uma melhora maior na pontuação da pele do que no grupo da ciclofosfamida (RR 1,51, 95% IC 1,06 a 2,13; ATB -27%, 95% IC -6% a -47%; RPC -51%, 95% IC -6% a -113%; evidência de certeza moderada). O NNTB foi 4 (95% IC 3 a 18). Em um ano, para o TCTH não-mieloablativo não seletivo a DM foi -16,00 (95% IC -26,5 a -5,5; ATB -31%, 95% IC -52% a -11%; RPC -84%, 95% IC -139% a -29%; evidência de baixa certeza).

Nenhum estudo relatou dados sobre hipertensão arterial pulmonar.

Efeitos adversos

No estudo TCTH não-mieloablativo seletivo houve 51/79 eventos adversos graves com TCTH e 30/77 com ciclofosfamida (RR 1,7, IC 95% 1,2 a 2,3), com um aumento absoluto de risco de 26% (IC 95% 10% a 41%) e um aumento relativo de 66% (IC 95% 20% a 129%). O número necessário para tratar para um desfecho prejudicial adicional foi 4 (95% IC 3 a 11) (evidência de certeza moderada). No estudo avaliando o TCTH seletivo mieloablativo, houve taxas similares de eventos adversos graves entre grupos (25/34 com TCTH e 19/37 com ciclofosfamida; RR 1,43, 95% IC 0,99 a 2,08; evidência de certeza moderada). O estudo avaliando o TCTH não-mieloablativo não seletivo não relatou claramente eventos adversos graves.

Notas de tradução: 

Tradução do Cochrane Brazil (Aline Rocha). Contato: tradutores.cochrane.br@gmail.com

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